8 de ago de 2023 | 01:08
Encontro ava guarani fortalece variedades tradicionais contra a monocultura da soja

No Oeste do Paraná, um dos principais celeiros da soja do Brasil, os Ava Guarani denunciam o envenenamento da população e buscam formas de preservar suas variedades de plantas tradicionais

Por Rafael Nakamura, da assessoria de comunicação do CTI

“Nós estamos morrendo lentamente porque não sabemos o que estão usando na terra. Muitas vezes o veneno é muito forte e sentimos, mas não sabemos dizer o que o veneno faz, o que está causando em nosso corpo”, diz Celso Japoty Alvez, liderança da aldeia Ocoy, município de São Miguel do Iguaçu (PR).

É assim que Celso tenta descrever o que o agronegócio, mais particularmente a produção de soja, tem causado no território do povo Ava Guarani na região Oeste do Paraná. O relato foi feito durante um encontro de troca de sementes tradicionais e diálogos sobre impactos da monocultura da soja no território guarani que aconteceu no último final de semana de julho na aldeia Ocoy.

O encontro teve cerca de 100 participantes, entre lideranças, jovens e anciãos de comunidades guarani das regiões Oeste, interior e litoral do Paraná, do Mato Grosso do Sul, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, além de parceiros de organizações indígenas, indigenistas, de direitos humanos e universidades.

A organização também teve o apoio e participação da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), do Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia (Capa), do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), da Terra de Direitos, e de pesquisadores da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), do Laboratório de Investigações Biológicas – LInBio, do Laboratório e Grupo de Pesquisa de Geografia das Lutas no Campo e na Cidade (Geolutas) e do Observatório da Questão Agrária no Paraná, os três últimos ligados à Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste).

O evento deu sequência aos trabalhos de levantamento dos impactos da produção de commodities agrícolas às comunidades ava guarani na Terra Indígena (TI) Tekoha Guasu Guavira sistematizados em um diagnóstico publicado pela Comissão Guarani Yvyrupa — CGY [Acesse aqui].

O nome dado ao encontro é revelador do que se trata para os Guarani. Yvyrupa: ñande yvy, ñande rete pode ser traduzido como Território guarani: nossa terra, nosso corpo. E se a ligação não é óbvia para os não indígenas, para os Ava Guarani é impossível de ser dissociada. Suas terras e seus corpos estão sendo diariamente afetados pela produção de soja nas monoculturas que cercam suas aldeias.

A forma como a aldeia Ocoy, sede do encontro, disputa espaço com as plantações de soja não deixa dúvidas de que as grandes quantidades de veneno pulverizado na lavoura estão afetando a população ava guarani. A aldeia ocupa um espaço na beira de um lago da Usina Hidrelétrica de Itaipu. A faixa de terra vai em linha reta e em quase toda sua extensão faz divisa com plantações de soja. Toda a estrutura da aldeia, as casas, a escola, fica bem próxima da lavoura, a menos de 50 metros, e fica bem óbvio para qualquer visitante que os agrotóxicos não estão sendo utilizados em uma distância segura.

“A plantação de soja tá nesse lado e a aldeia já é no outro lado. Não tem proteção, então no lugar onde tem casa já é plantação de soja. Os animaizinhos que a gente cuida na nossa casa, quando passa veneno, mata. A criança é muito curiosa, quando vê o maquinário, passa na cara o veneno”, relata Celso.

Essa proximidade extrema com a monocultura de soja não é uma exclusividade da aldeia Ocoy. A região Oeste do Paraná tem hoje 27 aldeias, a grande maioria delas cercadas pela soja, com poucas exceções que estão mais próximas de centros urbanos. Essas aldeias se dividem em duas Terras Indígenas (TIs) tradicionalmente ocupadas que são reivindicadas pelos Ava Guarani: a TI Tekoha Guasu Guavirá, nos municípios de Guaíra, Terra Roxa e Altônia, e a TI Tekoha Guasu Ocoy-Jacutinga, ainda não delimitada, mas que tem aldeias nos municípios de São Miguel do Iguaçu, Diamante D’Oeste, Santa Helena e Itaipulândia. Sem a demarcação dos territórios, as comunidades ava guarani ocupam as poucas áreas que restam de mata nas proximidades de lavouras.

“A Itaipu foi a grande responsável pela destruição do território do povo Guarani. A gente percebe que em menos de 40 anos todas as áreas foram tomadas pela plantação de soja e milho. E foi exatamente quando nossos parentes foram expulsos. Quando voltamos, encontramos nosso território cheio de plantações de soja”, lamenta Paulina Kunha Takua Rocavy Martines, da aldeia Y’Hovy em Guaíra, na TI Tekoha Guasu Guavirá.

No caso da TI Tekoha Guasu Guavirá, mais de 60% do território indígena está dominado pela produção de commodities para o agronegócio, segundo levantamento da CGY. Se considerarmos toda a área dos municípios de Guaíra e Terra Roxa, onde estão as aldeias, 80% das áreas são destinadas ao agronegócio.

Essa proximidade com as lavouras preocupa os Ava Guarani que passaram a conviver com problemas de saúde que antes não existiam em suas aldeias.

“Sempre perguntamos, o que causa o câncer? A gente não sabe, mas lentamente vai acontecendo. Aqui na aldeia já perdemos cinco pessoas com câncer, isso não existia antes”, conta Celso.

Além do medo de desenvolver algum tipo de câncer, a população ava guarani tem sentido na pele e no corpo os efeitos da exposição aos agrotóxicos. Durante todo o encontro na aldeia Ocoy foram diversos os relatos de pessoas que frequentemente apresentam dores de cabeça, dores de estômago, diarreias, erupções ou alergias na pele.

“A criança passa mal, o adulto passa mal. Depois de três dias para de sentir, mas o veneno fica no nosso corpo”, relata Ismael Martins, da aldeia Karumbe’y em Guaíra, na TI Tekoha Guasu Guavirá.

Os Guarani reclamam que nestes casos, quando procuram atendimento médico, os sintomas são sempre tratados como doenças comuns, sem que o diagnóstico leve em consideração a exposição aos agrotóxicos.

Nossa terra

Não só os corpos dos Guarani estão sofrendo os efeitos diretos do veneno e da monocultura. Em uma disputa que repete a invasão dos brancos nos territórios indígenas, a soja transgênica também não deixa espaço para nenhum outro cultivo.

“Com as retomadas de terra trouxemos nossas sementes tradicionais, mas logo os anciões perderam. Foram se perdendo aos poucos porque a terra já estava improdutiva para nossas sementes tradicionais”, conta Paulina.

Muitos dos Ava Guarani que participaram do encontro, também relataram uma preocupação com os animais com os quais antes compartilhavam o território. São relatos sobre a diminuição dos peixes e o desaparecimento de espécies que estavam nas matas da região. Nem mesmo os animais criados ficam ilesos. Durante o encontro, foram diversos os relatos de animais que adoecem e morrem nos períodos de pulverização de agrotóxicos nas lavouras. 

“Nhanderu [divindade guarani] deixou uma missão para todos os seres. As abelhas têm a missão de espalhar a vida por meio das flores, mas tem lugares em que elas não existem mais. E com os Ava Guarani, os brancos não estão nos deixando cumprir nossa missão que é cuidar da terra”, fala Paulina.

Além de representar sério risco para a biodiversidade que está se perdendo, as monoculturas de soja também agravam a situação de vulnerabilidade econômica dos Ava Guarani.

“Uma das funções sociais da terra é produzir alimentos e o agronegócio não produz alimentos. Ele inclusive está acabando com as possibilidades de produzirmos alimentos”, alerta Djoni Roos, professor de Geografia e do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural Sustentável da Unioeste.

Para driblar a escassez alimentar, as aldeias guarani se tornaram pequenas ilhas de diversidade de plantas alimentícias e medicinais, cujas sementes são guardadas com muito esforço, sobretudo pelas anciãs e anciãos do povo Guarani. É o que diz Ilson Soares, da aldeia Y’Hovy, em Guaíra. Ele contesta o discurso de que o agronegócio alimenta o país, questionando o modelo das monoculturas de soja.

“Parte da alimentação das aldeias vem da variedade de sementes que plantamos em pequenos espaços de terra e não de uma planta só que ocupa uma imensidão de terra”, diz Ilson.

Para tentar minimizar as perdas e garantir que espécies tradicionais tenham vida pelo território guarani, o encontro na aldeia Ocoy também teve um momento de troca de sementes. Os participantes das diversas regiões trouxeram variedades de suas aldeias e levaram outras de volta para casa.

“As sementes que foram trocadas vão se dividir por todos lugares, então a gente vai resgatando aquilo que já perdeu”, afirma Délia Takua Yju, professora da aldeia Ocoy.

Os esforços dos Guarani para manter as variedades passam por armazenar sementes até que existam condições para que possam ser plantadas. Muitas vezes essas espécies são guardadas na esperança de que um dia tenham espaço adequado para crescer.

“A gente já perdeu amendoim e perdeu o milho variado. Eu tinha guardado uma garrafinha que eu não consegui mais produzir, essa semente do milho variado eu guardei um ano, porque eu tinha medo de plantar e não dar certo. Eu tinha muito medo de perder essa semente, porque é muito importante pra mim e pra comunidade”, conta Délia.

Longe do Oeste do Paraná, mas em um contexto não muito diferente, Neusa Poty Quadro, da aldeia Pindo Mirim na TI Jaraguá, cidade de São Paulo (SP), também se preocupa com a sobrevivência das sementes tradicionais.

“Eu não pude trazer sementes porque estamos em uma retomada. Eu vim mais pra buscar sementes pra poder fazer um plantio mais tradicional dentro de São Paulo. A ideia é plantar bastante justamente porque a gente está em uma retomada que foi muito desmatada. A gente pretende recuperar a área e melhor que seja com plantas tradicionais”, afirma Neusa. 

Outro convidado para o encontro, Mariano Aguirre, da TI Inhacapetum, em São Miguel das Missões (RS), levou para a aldeia Koenju mudas e sementes tradicionais para dar continuidade ao cultivo e ao reflorestamento em seu território. No Rio Grande do Sul, as comunidades indígenas também estão expostas à monocultura de sementes transgênicas e ao uso excessivo de agrotóxicos. A área da aldeia Koenju foi, até 2001, uma área devastada, com pasto e gado. A comunidade luta para a recomposição ambiental e espiritual da área. 

As trocas de sementes têm sido uma prática importante para o povo Guarani no esforço para recuperar as condições para seu modo de vida, o nhandereko, nas aldeias de todo o território espalhado pelo que resta da Mata Atlântica nos estados do Sul e Sudeste do país.

“Eu quero muito poder mostrar pro jovem, pras crianças, a importância desses alimentos saudáveis que em muitos tekoa [aldeias] já não tem mais. Muitas vezes é por causa disso que a gente enfrenta muitas doenças. Então a gente precisa pensar mais em comer coisas que a gente planta dentro da aldeia, não só com alimentos comprados. Por isso, a gente quer plantar bastante pra recuperar nossos alimentos saudáveis e mostrar pros jovens que aquilo é o nosso nhandereko”, opina Neusa.

É por meio das iniciativas de plantio de variedades tradicionais, recuperação de áreas degradadas, reflorestamento com espécies nativas, proteção de nascentes e, principalmente, o fortalecimento do nhandereko, que os Guarani tentam segurar um mundo que acumula cada vez mais catástrofes ambientais.

Conflitos

Outro impacto das monoculturas de soja no território guarani são os conflitos decorrentes da disputa pela terra. Em alguns casos, esse conflito se estabelece dentro das comunidades. Foi o caso relatado por Rivelino Verá Popygua, hoje liderança da aldeia Kuaray Haxa, no litoral do Paraná, que se viu obrigado a sair de onde cresceu, na região centro-sul,  por não concordar com o arrendamento de terras para a plantação de soja. Rivelino viu os tratores e o veneno chegarem e decidiu partir.

“Começaram a desmatar, tiraram tudo que tinha lá. Agora só se vê a plantação de soja”, lamenta.

No Oeste do Paraná e no Mato Grosso do Sul, regiões com intensa atividade do agronegócio, os conflitos de terra são marcados pela extrema violência da população do entorno das aldeias. No início de março deste ano, uma ação da polícia militar deixou diversos feridos e prendeu três pessoas kaiowá que retomaram parte de seu território na TI Laranjeira Nhanderu, no município de Rio Brilhante.

“Estamos sofrendo uma perseguição, principalmente os ruralistas querem nos calar. Nós fizemos uma retomada e fui muito machucada, não só fisicamente como espiritualmente. É muito difícil ver os seus parentes serem atacados e não poder fazer nada”, conta uma liderança da TI Laranjeira Nhanderu que teve sua identidade preservada nesta matéria.

Segundo informações do Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, publicação anual do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), somente no ano de 2022 os estados do Paraná e do Mato Grosso do Sul juntos tiveram 22 casos de conflitos relativos a direitos territoriais.

(Publicado originalmente em Centro de Trabalho Indigenista)

Atualizado em 8.8, às 9h50.

Saiba mais

+ Impactos da produção de commodities agrícolas às comunidades Avá-Guarani da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá / Oeste do Paraná / CGY (2023)