28 de ago de 2023 | 22:08
Povo Guarani leva ao STF análise sobre graves consequências do voto de Alexandre de Moraes para os povos indígenas

Em novos memoriais, a Comissão Guarani Yvyrupa avalia que o Ministro manteve a aplicação da tese do marco temporal com outro significado, trazendo contradições insanáveis que, se acatadas pela Corte, levariam à completa insegurança jurídica e a risco à vida das comunidades

Por Assessoria Jurídica da CGY

Indígenas por todo o país seguem em mobilização geral com a confirmação da retomada do julgamento do marco temporal pelo Supremo Tribunal Federal (STF), pautado para o próximo dia 30 de agosto de 2023, quarta-feira.


Neste contexto, a CGY apresentou aos gabinetes dos 11 ministros do STF uma crítica ao voto do ministro Alexandre de Moraes, apresentado na última sessão do julgamento, em junho deste ano.


O material pretende contribuir com a análise dos ministros da Corte para sua decisão. O documento se soma à campanha lançada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), à qual a CGY é ligada, para reafirmar que o voto de Moraes é desastroso para os povos indígenas.


A análise da assessoria jurídica da CGY sustenta que o voto de Moraes contém contradições que levam a cenário de completa insegurança jurídica e terão o efeito de paralisar as demarcações, caso seja adotada pela Corte. (Confira síntese abaixo)


Os memoriais da CGY aprofundam a análise dos três maiores pontos de crítica ao voto de Moraes, concluindo pela defesa integral do voto do ministro Edson Fachin e a derrubada efetiva da teoria do “marco temporal”, sem espaço para sua “ressignificação”.


Anteriormente, a CGY já havia se manifestado no caso, quando ressaltou o vínculo dos povos indígenas com a terra e defendeu que não se pode admitir alterações normativas que provoquem retroação dos processos de demarcação, com amparo no princípio do não retrocesso social.

O “marco temporal” no STF

O tema conhecido como tese do “marco temporal” é tratado no Recurso Extraordinário 1.017.365/SC. Originalmente, é uma ação de reintegração de posse movida pelo órgão de meio ambiente do Governo do Estado de Santa Catarina contra comunidade indígena do povo Lakãño (também conhecido por Xokleng), com  o objetivo de expulsar os indígenas do território já declarado Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ e que também faz parte de reserva ambiental estadual.

Para isso, o estado alega uma tese segundo a qual os povos indígenas só teriam direito reconhecido nas terras em que estivessem presentes fisicamente na exata data de promulgação da Constituição em 5 de outubro de 1988. 

O julgamento fixará a interpretação da Corte sobre o artigo 231 da Constituição de 1988, relativa às relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena. Com base na solução do caso concreto do povo Xokleng, o STF pretende estabelecer diretrizes para todos os processos de demarcação de terra.

O julgamento, iniciado em setembro de 2021, foi interrompido novamente em junho de 2023, por força de pedido de vista do Ministro André Mendonça. Até o momento, votaram o Ministro Relator Edson Fachin, em favor do texto constitucional e da garantia dos direitos indígenas, e o Ministro Nunes Marques, que apresentou voto divergente. Terceiro Ministro a votar, o Ministro Alexandre de Moraes inaugurou o suposto “caminho do meio”.

Voto de Moraes é desastroso e traz insegurança jurídica, argumenta a CGY

A proposta do ministro Alexandre de Moraes recebeu duras críticas. Para Timóteo Vera Popygua, um dos coordenadores da CGY, o posicionamento do movimento indígena desde o início é a defesa do direito originário – “Não existe meio termo”, ele afirma, “Nós exigimos nosso direito completo”.

Ao avaliar o voto, o assessor jurídico da CGY Vera Yapua, do povo Guarani, sublinha que apesar de possível “boa intenção”, se prevalecer, o voto de Moraes terá como resultado a perpetuação da opressão histórica contra os povos indígenas, porque, em suas palavras, “premia com indenização prévia vultosa quem no passado foi diretamente responsável pela expulsão dos indígenas de seus territórios”.

Em seus memoriais, a CGY argumenta que é incorreto dizer que o ministro Moraes tenha votado contra a tese do “marco temporal”. Embora Moraes corretamente reconheça a inadequação e inconstitucionalidade deste critério para aferição da tradicionalidade da ocupação indígena, e reforce a autoridade do laudo antropológico, o ministro manteve o “marco temporal” como critério para defender “indenização prévia” a ocupantes não indígenas por títulos de terra concedidos ilegalmente pelo poder público no passado.

Os pontos de maior preocupação no voto do ministro Alexandre Moraes analisados pela CGY são:

(i) a possibilidade de considerar “atos jurídicos perfeito” títulos de propriedade emitidos ilegalmente sobre terras indígenas, em desrespeito ao texto constitucional;

(ii) a exigência de prévia indenização a particulares por esses títulos antes da devolução das terras aos indígenas e

(iii) a possibilidade de desconsideração das terras tradicionalmente ocupadas reivindicadas, propondo “compensação territorial” com outras áreas que não guardam relação com o povo indígena.

Apresentamos abaixo a síntese dos três pontos criticados apresentada pela CGY em memoriais ao STF.

1. Legalização de títulos incidentes em TI é inconstitucional e repete injustiça histórica

Conforme afirma a CGY, o uso que o ministro faz da teoria do “marco temporal” para definir situações em que títulos de propriedade incidentes em terras indígenas pudessem ser tratados como “atos jurídicos perfeitos” cria artificialmente “dois conjuntos de terras indígenas, sendo o texto constitucional válido para um, mas não para o outro”.

Tal proposição está em absoluta contrariedade com a afirmação expressa no texto constitucional de que esses títulos “são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos” (§ 6º, do Art. 231 da CF de 1988), contradição que não pode ser acolhida pela Suprema Corte.

Na prática, considerar como “atos jurídicos perfeitos” os títulos de propriedade incidentes sobre terras indígenas poderia deixar as comunidades indígenas sujeitas a decisões desfavoráveis no âmbito de ações de reintegrações de posse no país, com risco de serem expulsas das terras tradicionalmente ocupadas que a Constituição buscou proteger, e o resultado seria o oposto da paz social almejada pelo eminente Ministro.

Apenas em relação aos guarani do sul e sudeste, a CGY mapeou mais de uma centena de ações de reintegração de posse contra os indígenas que poderiam resultar na remoção das comunidades, ato igualmente inconstitucional, por força do § 5º, do Art. 231.E, por isso, em primeiro lugar, a CGY questiona os ministros do STF se a correta interpretação do texto constitucional sobre os direitos territoriais indígenas é compatível com posição que pode desencadear decisões de reintegração de posse contra indígenas em massa, sem que o poder público tenha sequer capacidade de suportar efeito tão grave no viés social.

2. Prévia Indenização pode inviabilizar demarcações

O modelo da “indenização prévia” proposto por Moraes pode ser comparado ao adotado atualmente na titulação de terras quilombolas, em que o direito das comunidades e a garantia da posse exclusiva ficam condicionados à indenização prévia a particulares. Segundo estatísticas relacionadas ao reconhecimento dessa modalidade de territórios tradicionais, se prevalecer a proposta de Moraes seriam pelo menos 290 anos para concluir os 239 processos de demarcação de Terras Indígenas já em curso.

Ademais, a proposição de Moraes poderia atrair antigos invasores de terra indígena já indenizados por suas benfeitorias e que já se retiraram das áreas demarcadas, voltando para cobrar novas indenizações da União. De modo que o orçamento do governo poderia ficar totalmente comprometido com casos já resolvidos e estabilizados, inviabilizando as demarcações pendentes e colocando em risco a posse dos indígenas.

O resultado, ao contrário do equilíbrio sugerido por Moraes, seria a amplificação dos conflitos, em completo desfavor dos indígenas, destaca o documento da CGY.

No caso concreto da TI Ibirama-Laklãnõ analisado pelo STF, se a tese de Moraes prevalecer, o governo federal poderia ser obrigado a dar “indenização prévia” pela área da reserva ambiental ao Estado de Santa Catarina, sendo que, historicamente, está comprovado que foi justamente o governo estadual quem titulou ilegalmente parcela da área indígena, em partes para si e para particulares. Já os indígenas poderiam ser impedidos de usar suas terras até que essa indenização fosse paga.

Isso representaria uma situação de enriquecimento ilícito do Estado de Santa Catarina. Quadros semelhantes podem se repetir em várias situações pelo Brasil, resultando sempre em postergação por décadas ou até séculos da devolução da terra aos indígenas, e a “premiação” de atos comissivos ou omissivos da mora em reconhecimento do direito territorial baseados neste novo e incerto conceito de “marco temporal” criado por Moraes.

3. Compensação de terras por interesse público é arbitrária e vai estimular Invasões

O terceiro ponto criticado é a defesa por Moraes de que uma terra de ocupação tradicional indígena poderia ainda assim não ser demarcada, em proveito de uma “compensação” por outras terras, em casos de “interesse público” e visando à “paz social”, e desde que houvesse “expressa concordância” da comunidade.

As hipóteses que Moraes alegou querer abarcar com essa proposta, que seriam situações em que seria “realisticamente impossível readquirir essa terra” em favor das comunidades indígenas, na avaliação da CGY, são virtualmente inexistentes. Em contrapartida, os conceitos vagos de “interesse público” e “paz social” permitiriam a sua aplicação para todo e qualquer caso, esvaziando a proteção aos direitos indígenas.

No texto, a CGY aponta que no caso célebre da TI Raposa Serra do Sol, em Roraima, o mesmo argumento era usado para questionar a demarcação – de que seria impossível a retirada dos arrozeiros invasores da área indígena, e que, após o julgamento favorável no STF, não houve dificuldades em cumprir a decisão judicial e efetivar a demarcação.

Entre os riscos da proposta de “compensação territorial” está o estímulo à invasão generalizada das terras indígenas para criar “fatos consumados” e inviabilizar as demarcações. Exatamente o oposto do desejo do constituinte originário, gerando enorme pressão, ameaças e chantagens sobre as comunidades, além de fazer com que a exigência de “consentimento” seja totalmente insuficiente, especialmente nas comunidades mais vulneráveis.

Essa proposta de “compensação territorial”, segundo Vera Yapua, ainda pode ter um impacto extremo para a população indígena vivendo em regiões com intensa pressão de não indígenas, onde se enfrentam situações críticas de invasão e grilagem das Terras Indígenas.

Além disso, considera Vera, ela expressa um preocupante teor “integracionista”, ou seja, como se aos diferentes povos indígenas se pudesse reconhecer direitos distintos, a uns mais e a outros menos, a depender do contexto de invasão de seu território, e efetivamente relegar menos direitos às comunidades indígenas fora da Amazônia, insistindo em uma concepção superada pela Constituição Federal.

O voto de Moraes contraria a Constituição de 1988, que veda expressamente a remoção de indígenas de suas terras tradicionalmente ocupadas (§ 5º, do Art. 231).

*

A CGY ressalta nos memoriais que são os povos indígenas os mais lesados por danos decorrentes da titulação ilegal pelos governos, em beneficio de não indigenas, de parcelas de seus territórios tradicionais, com a expulsão de suas terras e o impedimento de usufruto de seu território por décadas, e em alguns casos até mais de século, situação que perdura até hoje.

A CGY reitera a defesa da tese formulada pelo Ministro Relator Edson Fachin, visando o respeito ao texto constitucional, com a garantia da vida e do bem viver dos povos originários, e da concepção de país multiétnico e com reconhecimento e respeito à diferença.